Criminalização de dívida de ICMS criou insegurança jurídica penal, avaliam advogados – 30/10/2020

Nove meses após o Supremo Tribunal Federal (STF) fixar a tese sobre a criminalização do devedor contumaz de ICMS declarado — desde que se comprove dolo –, os membros dos tribunais inferiores têm dado decisões com critérios distintos para absolver ou condenar os contribuintes enquadrados pelo Ministério Público neste novo tipo penal.

Parte da explicação de ainda não ter se formado um entendimento consolidado na Justiça brasileira, segundo especialistas ouvidos pelo JOTA, está no fato de o país não ter uma legislação nacional para definir o que é um devedor contumaz. Hoje fica a cargo dos estados — e dos juízes — delimitar individualmente os parâmetros dessa prática.

Isso faz com que as secretarias de Fazenda, as Procuradorias do Estado e os Ministérios Públicos de cada estado atuem sem um padrão contra empresários que declaram o imposto de circulação de mercadorias, mas não repassam o valor para o Fisco estadual.

Em dezembro do ano passado, o STF ao julgar o RHC 163.334 fixou a tese de que “o contribuinte que de forma contumaz e com dolo de apropriação deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente de mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º inciso II da lei 8137/1990”. Essa é a lei que define os crimes contra a ordem tributária. A ação foi impetrada por empresários de Santa Catarina denunciados pelo não pagamento de ICMS entre 2008 e 2010.

“Quando o STF diz que a contumácia é elemento essencial do crime, mas não há uma norma definindo os padrões do devedor contumaz, se tem um juiz mais conservador, que entende contumácia de uma forma mais rígida, se o sujeito não pagou 4 meses, ele pode ser condenado. Já outro entende que são dez meses. Ninguém consegue conviver com incerteza penal, ela afasta investidores”, diz Vinicius Jucá, sócio de TozziniFreire Advogados e professor da FGV Direito.

Um efeito colateral grave, segundo avaliam advogados ouvidos pelo JOTA, é que a a tese do STF tem o potencial de ser usada também nas dívidas de ICMS que estão sendo discutidas no âmbito de processos administrativos. A chave da questão está no fato de que o entendimento da Corte não modulou os efeitos da decisão, permitindo, portanto, que ela seja aplicada em ações anteriores ao julgamento que fixou a tese.

Para a tributarista Ariane Guimarães, sócia do Mattos Filho, como a decisão do STF definiu que se é necessário averiguar o conjunto de elementos no caso concreto para ser caracterizado ou não o crime, é possível que as Cortes Administrativas que analisam e deliberam sobre uma dívida possam entender que a prática foi recorrente e com dolo. “Nessa situação, nada a impede de acionar Ministério Público para averiguar a prática na perspectiva penal”, diz.

Os riscos dessa perspectiva ganhar tração no país, no entanto, ainda não é mensurável, segundo o criminalista Enzo Fachini, sócio do Fachini, Valentini e Ferraris Advogados. “Ainda é cedo para dizer como isso será feito no dia a dia, mas é possível que esse entendimento seja aplicado nos tribunais país a fora”.

Há também o agravante da pandemia da Covid-19, que suspendeu prazos processuais em todo o país e atrasou investigações contra aqueles que devem o tributo.

“Sem a pandemia, já estaríamos formando uma jurisprudência nos tribunais de Justiça de São Paulo em relação ao devedor contumaz de ICMS. Mas a crise sanitária fez com que aguardássemos para fazer representações por essa perspectiva”, afirma o procurador do estado de São Paulo Alessandro Junqueira.

Nesse cenário, a principal utilização da tese fixada pelo STF nos tribunais tem sido para corroborar ou reverter decisões anteriores envolvendo empresários que devem ICMS declarado.

No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), por exemplo, o RHC 163.334 foi aplicado principalmente para validar decisões judiciais anteriores. Na Apelação Criminal nº 0003615-44.2011.8.26.0347, a 4ª Câmara de Direito Criminal do TJSP negou um recurso da defesa, que alegava ausência de dolo na conduta de um empresário condenado com base na Lei 8137/1990. Ele deixou de recolher o ICMS declarado entre outubro de 2009 e julho de 2010 no valor de R$ 627.225,78.

“Nem se olvidando que mais recentemente, a c. Corte Suprema, nos autos do RHC nº 163.334/SC relatado pelo e. Min. Roberto Barroso, assentou a tese de que o contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, fazendo da inadimplência tributária seu modus operandi, deixa continuadamente de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço para incidir no tipo penal do artigo 2º, II, da Lei 8.137/1990. A condenação, enfim, se revela acertada, não havendo demonstração de qualquer excludente”, diz o acórdão do julgamento, realizado em 30 de junho deste ano.

Há, também, decisões favoráveis aos réus. No Supremo Tribunal de Justiça (STJ) já havia um entendimento anterior ao STF, de junho de 2019, sobre devedor declarado de ICMS. No entanto, o tribunal usava o entendimento de que deveria ser considerado crime qualquer devedor desse tributo. Com a decisão do STF, os ministros do STJ também passaram a aplicar os parâmetros de contumácia e dolo nos julgamentos recentes.

Em agosto, na apreciação do AgRg no HC 97.903, a 6ª turma do STJ seguiu entendimento do relator Rogerio Schietti Cruz e trancou uma ação penal contra um empresário que deixou de pagar R$ 36.225,42 de ICMS declarado no mês de maio de 2013.

“Realça a denúncia, portanto, que a persecução penal é lastreada em apenas um único mês de não recolhimento do imposto devido, circunstância que, de per si, já impõe cuidado redobrado na avaliação de eventual conduta delituosa, a qual deve somar-se às demais circunstâncias de fato que orbitam o caso concreto”, diz o acórdão.

Decisão pode coibir a prática

Assim como foi com o crime de apropriação indébita previdenciária, a expectativa de quem investiga a prática de declarar e não pagar o ICMS é a de que as operações contra grandes devedores, nos moldes da tese fixada pelo STF, servirão para coibir cada vez mais essa prática.

“Quando os casos começarem a ser amplificados, a ficha vai começar a cair. Não me parece ser o caso de que a decisão do STF teve efeito imediato, mas quando fizermos as primeiras operações, vamos deixar o recado de que isso mudou”, afirma Carlos Augusto Gomes Neto, diretor de Arrecadação, Cobrança e Recuperação de Dívida da Sefaz-SP.

Minas Gerais é um exemplo desse reflexo. Em julho deste ano, uma força-tarefa composta pelo Ministério Público de Minas Gerais, pela Receita Estadual e pela Polícia Civil deflagrou a operação “Direto com o Dono”, que tinha como alvo o fundador da rede varejista Ricardo Eletro.

Na ocasião, os investigadores afirmaram que, por quase uma década, a empresa vinha omitindo o recolhimento de ICMS, no valor aproximado de R$ 400 milhões. Ao JOTA, o promotor de justiça do caso, Fabio Reis de Nazareth, revelou que a reação à operação foi imediata:

“Em MG, há outros grandes grupos empresariais que também têm uma política de não pagar o imposto. Após a operação, algumas empresas voluntariamente procuraram o Fisco alegando que adotavam a prática, mas queriam se regularizar para não acontecer o mesmo”.

Criação dos CIRA

Além do reflexo para o empresariado no geral, a tese do STF também ajudou a impulsionar o trabalho dos Comitês Interinstitucionais de Recuperação de Ativos (CIRA). Com os percalços impostos pela pandemia da Covid-19, alguns estados optaram por usar esse período para estruturar esses grupos de trabalho.

“No Rio Grande do Sul já havíamos criado o CIRA-RS, mas a decisão do STF acabou fortalecendo os nossos laços. Hoje já temos mais de 40 investigações em andamento, todas ainda em sigilo!, diz diz Luis Fernando Flores Crivelaro, subsecretário adjunto da Receita Estadual.

Ele antecipou que no estado, o objetivo não é prender, mas deixar claro que agora, além do transtorno civil, haverá o transtorno penal para quem declarar e não pagar ICMS.

Em São Paulo, no final de agosto, foi assinada uma resolução conjunta entre a Procuradoria-Geral do Estado, o Ministério Público Estadual e a Secretaria da Fazenda e Planejamento para a criação CIRA-SP.

“A partir de agora, todas as investigações de recuperação de débito tributário serão feitas no âmbito do CIRA, mas o estado de São Paulo não pretende banalizar o uso dessa decisão do STF para condenar a todos. Será utilizado com responsabilidade e parcimônia”, diz o procurador Alessandro Junqueira.

No Ceará, a decisão do STF respaldou o trabalho do CIRA, que já havia sido criado anteriormente. No entanto, o governo estadual estuda agora a edição de uma lei para definir o devedor contumaz, segundo informou ao JOTA o procurador do estado e presidente da Associação Nacional dos Procuradores de Estado, Vicente Braga.

Riscos da pandemia da Covid-19

Com a ausência de uma legislação nacional para definir os parâmetros do devedor contumaz, há uma preocupação sobre processos futuros que envolvam quem deixou de pagar ICMS em decorrência da pandemia do coronavírus.

Só no segundo trimestre do ano, os estados brasileiros registraram perda média de 18% na arrecadação tributo, comparado com o mesmo período do ano passado. A estimativa é do Comitê Nacional de Secretários de Fazenda.

“O que a gente vai notar agora com o problema da Covid-19 é que os juízes estaduais vão julgar no ano que vem casos de devedor de ICMS durante a crise sanitária. Mas se o empresário ficou devendo por seis meses por causa da crise, ele é contumaz? Não sabemos”, diz o advogado Vinicius Jucá.

Para o diretor de Arrecadação, Cobrança e Recuperação de Dívida da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, Carlos Augusto Gomes Neto, esse não deve ser um risco alto, já que existe uma série de padrões que podem ser delimitados para entender se o problema foi a crise financeira ou uma prática recorrente da empresa.

“Em São Paulo, por exemplo, Temos um robô de Inteligência Artificial que consegue, com bastante acerto, separar quem é contumaz e quem não é. Vamos pensar em alguém que está desde 2016 sem pagar ICMS, essa pessoa não vai poder chegar e alegar que a pandemia atrapalhou os negócios dele”, afirma.

“A exigência de comprovar dolo e contumácia definida pelo STF criou um filtro importante para que pode evitar a banalização desse tipo de denúncia”, avalia Thiago Matos, procurador em São Paulo. É importante que o filtro seja bem aplicado sob pena de, num efeito colateral indesejado, criminalizar o contencioso tributário.

Fonte: JOTA