Empresa na Argentina pode ter de distribuir 10% do lucro – 16/09/2010

Projeto: Governo apoia medida, que preocupa companhias brasileiras
As empresas brasileiras instaladas na Argentina acenderam o sinal de alerta com a apresentação de um projeto de lei que estabelece a distribuição obrigatória de 10% dos lucros líquidos aos funcionários. O projeto é de autoria do deputado peronista Héctor Recalde, advogado da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), maior central sindical do país e aliada de primeira hora do casal Kirchner.
Funcionários do gabinete de Recalde confirmaram ao Valor que a proposta será apresentada entre hoje e segunda-feira. Ela prevê a cobrança de 10% do lucro anual, descontados os investimentos e o pagamento de tributos. De cada 100 pesos recolhidos, 80 serão embolsados pelos empregados da própria empresa, com base em critérios de antiguidade e nível salarial. Ficarão excluídos funcionários que ocupam cargos gerenciais e de diretoria. De acordo com o projeto, os 20 pesos restantes formarão um “fundo solidário”, destinado a financiar programas de incentivo à formalização do trabalho sem carteira assinada.
Para o deputado peronista, a proposta beneficiará as próprias companhias, ao estimular o consumo. Ele argumentou que as empresas que decidam reinvestir todos os lucros do ano anterior ficarão livres de pagar a bonificação aos funcionários. “Essa iniciativa não prejudica os empresários. Pelo contrário, ela os beneficia, já que incentiva os empregados a fazer a empresa prosperar”, afirmou Recalde.
O governo relutou em apoiar abertamente a proposta. Mas, na semana passada, ela foi defendida por líderes governistas no Congresso e pelo ex-presidente Néstor Kirchner, uma espécie de primeiro-ministro nos bastidores da Casa Rosada.
Coube à União Industrial Argentina (UIA), pelo lado empresarial, fazer o lobby contrário. A entidade considera o fatia a ser dívida, 10% do lucro líquido, excessiva.
O presidente da UIA, Héctor Mendez, criticou duramente o projeto e disse que “a Argentina vai se parecer com Cuba”. A entidade protestou ainda contra a série de bloqueios dos sindicatos em cinco fábricas da Siderar, a maior siderúrgica do país, pertencente ao grupo Techint. Os piquetes ameaçaram a produção da Siderar e o abastecimento de aço às montadoras e fabricantes de eletrodomésticos. Ele cobrou que “se ponham limites” à CGT.
Sem pronunciar-se publicamente, por temor a represálias do governo e dos sindicatos, as subsidiárias de companhias brasileiras já manifestaram preocupação às câmaras empresariais e pediram avaliações jurídicas do projeto. A maior crítica é quanto à obrigatoriedade da distribuição de lucros, ao contrário do que ocorre no Brasil, onde o mecanismo costuma ser acertado como parte das negociações salariais com os sindicatos. No início do ano, o Ministério da Justiça brasileiro chegou a elaborar projeto de lei que estabelecia a divisão de 5% do lucro líquido.
Outra queixa dos brasileiros é que, pela proposta de Recalde, não se pode condicionar essa bonificação a metas para melhorar resultados. Se o lucro da empresa cair pela metade, de um ano para outro, ela continuará tendo que distribui-lo – independentemente de uma queda das vendas ou da produção.
“O que se vive aqui hoje é pior do que o sindicalismo mais duro dos anos 70 e 80 no ABC paulista”, diz o presidente de uma indústria brasileira de calçados instalada na Argentina. “A pressão de custos está muito forte”, acrescenta o diretor de outra empresa, líder em seu segmento, que fechou o primeiro semestre com nível de produção recorde e aumento do lucro em relação ao ano passado. O problema, segundo ele, é que houve reajustes salariais de até 29%. Na empresa calçadista, a negociação recém-fechada com o sindicato foi para uma alta de 39% nos salários.
Apesar das reclamações do setor privado, a distribuição obrigatória de lucros tem amparo constitucional, adverte o advogado Héctor Rossi, sócio do escritório portenho Rossi Camilion e Associados, que atende uma série de empresas brasileiras. A participação dos trabalhadores nos resultados das companhias foi incluída na Constituição da Argentina em 1957, durante o regime militar da época, dois anos após a queda do primeiro governo do general Juan Domingo Perón. “A questão é que, desde então, e já se passaram 53 anos, esse direito constitucional nunca foi regulamentado”, disse Rossi ao Valor.
Segundo o advogado, no entanto, o projeto de Recalde pode colidir com o direito de propriedade, dependendo da abrangência do texto final e da metodologia de cálculo do lucro líquido. “É preciso haver muito equilíbrio entre o direito das empresas e o direito dos trabalhadores”, diz Rossi. De qualquer forma, ele acredita que o projeto chega em um momento inoportuno. “Todos os analistas coincidem em que a economia vai bem, mas que faltam novos investimentos. Deveríamos analisar, em profundidade, se estamos na hora mais adequada de regulamentar esse direito.”
Fonte: Valor Econômico – Daniel Rittner | De Buenos Aires