O ITCMD E A IMPOSSIBILIDADE DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO SUPERVENIENTE DE NORMAS ANTERIORES À EC N° 132/2023

Manter atenção à valores se trata de atividade de suma importância para a realização de quaisquer atividades relacionadas ao pleno usufruto dos direitos fundamentais e cuidado com o devido cumprimento dos deveres da cidadania. Racionalizar que o sistema normativo, em ponto vital, deve ser dotado de compatibilidade entre as regras estabelecidas, previsibilidade dos efeitos das referidas normas e que a formulação das referidas normas aconteça mediante um procedimento lógico e válido, é afirmar que o sistema em tela é dotado de segurança jurídica.

Nesta toada, a Emenda Constitucional n° 132/2023, ao regular sobre a competência de legislar sobre o ITCMD incidente em doações de bens imóveis em que o doador seja domiciliado ou residente no exterior, deixou de observar o referido princípio.

Isso porque, nos termos do artigo 16 das disposições transitórias da EC n° 132/2023, os estados federativos são dotados da possibilidade de realizar a cobrança de ITCMD em doações de autoria de residentes no exterior e de heranças relativas a inventário processado no exterior ou que o de cujos era domiciliado fora do país.

Sobre o tema, estabelece o artigo 155, parágrafo 1°, inciso III, da Constituição Federal, que a incidência de ITCMD sobre as situações mencionadas alhures se encontra vinculada à regulamentação de Lei Complementar.

Ou seja, a cobrança do referido imposto somente seria viável mediante Lei Complementar de caráter federal, dispositivo até então inexistente na legislação pátria. Dessa maneira, são inconstitucionais cobranças realizadas pelo Fisco Estadual acerca do tema.

Ainda que algum estado federativo tenha regulamentação estabelecida acerca do tema, tal medida em nada pesa para justificar a cobrança do ITCMD, pois referida operação estaria incompatível com a Constituição Federal ante a inexistência de Lei Complementar reguladora do tema.

É justamente nesse sentido o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, que ao julgar o Tema n° 825 de Repercussão Geral, fixou a tese de que é vedado aos estados e Distrito Federal proceder à instituição do ITCMD nas hipóteses de que trata a presente obra, sem a devida edição de Lei Complementar exigida pela Constituição Federal.

Embora a Carta Magna estabeleça a competência aos estados para instituir o tributo em análise, estabelece também limites ao poder de tributar, sobretudo ao de cujos que possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve seu inventário processado no exterior, sendo imprescindível lei complementar para estabelecer os elementos de conexão e fixar a qual unidade federada caberá o imposto, conforme a Ementa do Recurso Extraordinário n° 851.108/SP, leading case da Repercussão Geral.

No caso, o Supremo analisou e determinou a inconstitucionalidade do art. 4º, inciso II, alínea “b” da Lei Estadual nº 10.705/00 do Estado de São Paulo. Referido dispositivo determinava a exigência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis ou Doação de Quaisquer Bens ou Direitos em hipóteses nas quais o doador possuía domicílio ou residência no exterior, em notável abuso do poder de tributar.

Retomando o estudo acerca das alterações instituídas pela EC nº 132/2023, referida norma tornou prescindível a existência de Lei Complementar que regulamente a hipótese tratada, tornando, então, as leis estaduais como aptas a instituir o ITCMD nas hipóteses tratadas.

Nesse teor, definiu o cenário em que a doação realizada por doador residente ou domiciliado no exterior, compete ao Estado ou ao Distrito Federal, onde se situa o donatário, a regulamentação da instituição e cobrança do ITCMD.

Em outro cenário, caso o donatário também possua residência ou domicílio no exterior, competirá, a regulamentação da instituição e cobrança do ITCMD, ao Estado onde se situar o bem ou ao Distrito Federal. Ainda, sobre os bens transmitidos por sucessão localizados no exterior, o imposto incidente competirá ao Estado onde o falecido era domiciliado, ou, quando esse residia ou era domiciliado no exterior, deverá ser recolhido ao Estado de domicílio do sucessor ou legatário ou, ainda, ao Distrito Federal.

Conferir a possibilidade de cobrança do ITCMD pelos estados federativos nas hipóteses tratadas, nada mais é do que medida que não deve abarcar a constitucionalidade de normas estaduais anteriores à EC n° 132/2023 que definiram a instituição do ITCMD nos termos tratados, haja vista que referida ação configura o fenômeno da constitucionalização superveniente.

A constitucionalização superveniente se trata de tornar uma norma que é originalmente inconstitucional, em norma constitucional se valendo de Emenda à Constituição ou formulação de nova Constituição. À saber, referido fenômeno jurídico não é contemplado pelo sistema jurídico brasileiro, conforme determinado pelo Supremo no julgamento do RE nº 390.840/MG, afinal, normas inconstitucionais possuem caráter de nulidade absoluta em face do enfrentamento de questões constitucionais, ao contrário de normas de nulidade relativa que são sanáveis pelos meios adequados.

Nesse sentido, na hipótese de o estado federativo valer-se de norma anterior à EC n° 132/2023 para fundamentar a cobrança de ITCMD nos cenários reiteradamente apontados, referido ato é plenamente nulo. Para tanto, mister que os estados ou Distrito Federal formulem novas normas para instituir referida cobrança. Por óbvio, devendo ser respeitadas as anterioridades de exercício e nonagesimal, de modo que a referida cobrança somente seria no ano seguinte à publicação da norma e ou respeitados os 90 dias de carência após sua publicação.

Desde já, é importante ressaltar que com o advento da EC n° 132/2023, o ITCMD tratado pode estar sujeito às alíquotas progressivas, conforme a redação do artigo 155, parágrafo 1º, inciso VI, da Constituição Federal, introduzido pela Emenda Constitucional em análise. Ou seja, quanto maiores forem o quinhão, legado ou doação, maiores serão às alíquotas aplicadas, resultando em um maior recolhimento do tributo. Destaca-se que as referidas alíquotas já haviam sido julgadas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ao julgamento do Recurso Extraordinário n° 562.045/RS.

À medida em que forem elaboradas normas para regulamentar a cobrança de ITCMD sobre doações de autoria de residentes no exterior e de heranças relativas a inventário processado no exterior ou que o de cujos era domiciliado fora do país, bem como normas para estabelecerem as alíquotas progressivas de ITCMD, atentar-se às futuras alterações sobre as hipóteses tratadas é elemento basilar do planejamento sucessório e tributário.

FILIPE SARAIVA DOS SANTOS é estagiário da Jorge Gomes Advogados e bacharelando em Direito pelo Centro Universitário Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente.