Não é todo dia que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) se vale de definições do direito penal para analisar um processo. Mas isto aconteceu em junho, durante reunião da 3ª Turma da Câmara Superior do tribunal. Por maioria de votos, o colegiado entendeu que provas obtidas de maneira ilícita poderiam servir de base para manter um auto de infração da Receita Federal e, consequentemente, uma cobrança tributária.
O acórdão, considerado controverso por advogados e outros conselheiros da 3ª Seção, colocou estes elementos na mesa ao analisar o caso de uma empresa envolvida na Operação Dilúvio. Para resolver o impasse de uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a turma se utilizou do direito penal para manter a cobrança.
“[O acórdão] consagra a aceitação de provas ilícitas no Carf”, afirmou ao JOTA um conselheiro do tribunal administrativo.
Operação dilúvio
Em 2006, a Receita Federal desbaratou uma rede de sonegação no momento da importação de eletrônicos que, pelas suas contas, gerou uma sonegação próxima de R$ 500 milhões. A Operação Dilúvio, como ficou conhecida, revelou um esquema onde as reais adquirentes utilizavam-se de empresas do tipo trading para efetuar a compra de bens. Segundo o Fisco, ao mesmo tempo que as tradings declaravam valores menores ao Fisco, as reais adquirentes pagavam por fora, direto às reais exportadoras. Segundo publicações da época, 102 pessoas teriam sido presas por participação no esquema.
A Receita, ao autuar a empresa CIL, uma das envolvidas na negociação, aplicou a cobrança do que seriam o Imposto de Importação (II) e o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) não recolhidos em importações, além de multa isolada, na alíquota de 100% do valor presente na nota fiscal. Após a 1ª instância administrativa afastar parte da cobrança e manter cerca de R$ 2,3 milhões da cobrança original, o processo chegou à 3ª Seção do Carf, responsável pela análise de casos envolvendo a legislação aduaneira.
Ao analisar os autos em março de 2018, a turma se encontrou em um dilema: o STJ já havia considerado, no Habeas Corpus (HC) 142.045, que seriam ilícitas as provas obtidas após o 60º dia de interceptação das comunicações telefônicas, como era o caso de parte das evidências utilizadas tanto na esfera penal quanto fiscal. Por conta disso, por cinco votos a três, a turma afastou a maioria das cobranças, se curvando ao entendimento do STJ.
O relator acabou vencido, de maneira que o presidente da turma, conselheiro Rosaldo Trevisan, assumiu o voto vencedor. “Em tese, este julgador tem todo o direito de discordar do entendimento externado pelo STJ (ainda mais por estar em desconformidade com a jurisprudência anterior e posterior do mesmo tribunal), mas, por outro lado, tem todo o dever de acatá-lo, sob pena de subversão do ordenamento jurídico, da função dos distintos poderes, e da unidade de jurisdição.”
O entendimento não é novidade no colegiado. “É uma tese que eu e o Trevisan sustentamos há quatro anos na turma, e que sai vitoriosa nestes casos”, explicou Leonardo Ogassawara de Araújo Branco. O conselheiro, que também votou no julgamento de 2018, exemplificou o raciocínio: “Se o Fisco ficou sabendo de uma prova ilícita, seja porque viu na Globo, no jornal, ficou sabendo por um vizinho, ele tem autonomia para ir até lá e promover a fiscalização. Se a fiscalização produzir provas que, autonomamente, sustentem a acusação, a autuação deve se manter. Se a acusação baseia-se em provas nulas, a autuação há de cair”.
A Teoria da Descoberta Inevitável
A Fazenda Nacional recorreu então à Câmara Superior, que reverteu o entendimento da turma de Trevisan e Branco. Por cinco votos a três, o colegiado considerou as provas lícitas, baseando-se na Teoria da Descoberta Inevitável, emprestada do Direito Penal.
“A teoria, aplicada neste caso específico, garante que o Fisco poderia chegar àquela prova e demonstrar aquele fato, independente do meio utilizado ilicitamente”, explicou a coordenadora do contencioso tributário do Roncato Advogados, Carina Chicote. A teoria, em um raro caso de aplicação no direito tributário, abriu precedente no julgamento para uma segunda conclusão: se a teoria for válida, bastaria o Fisco comprovar que teria condições de encontrar tais provas para considerar as provas ilícitas como indiscutíveis.
Advogados ouvidos pelo JOTA encontram falhas nesta tese. “Se há dúvidas se aquelas provas seriam descobertas por uma investigação fiscal – e sobre este caso pairam dúvidas – há que se aplicar o artigo 112 do Código Tributário Nacional, que diz que a lei tributária que define infrações e sanções há sempre que ser mais favorável ao acusado”, pontuou Anamaria Prates Barroso. A advogada criminalista analisou o caso, e considerou tal conexão de fatos como fraca.
“É uma dificuldade gigantesca em se fazer este corte, daquilo que seria descoberto apesar da ilicitude das provas presentes no processo”, concluiu um conselheiro da 3ª Seção do Carf.
O relator do caso na Câmara Superior, conselheiro Andrada Márcio Canuto Natal, enxergou de outra forma. “A conclusão natural e inevitável a que se chega é que as investigações das operações empreendidas pelos agentes envolvidos nas práticas ilícitas de que tratam os autos já estavam em curso antes que o Poder Judiciário tivesse autorizado as interceptações telefônicas, razão a mais para que se reconheça que as provas obtidas no cumprimento dos mandados de busca e apreensão”, afirmou o conselheiro em seu voto.
Com isso, concluiu Natal, “me sinto seguro em afirmar que, no caso concreto, deve prevalecer o disposto nos parágrafos 1º e 2º do artigo 157 do Código do Processo Penal, na parte em que admite as provas derivadas de provas ilícitas, desde que fique demonstrado que tais provas, as derivadas, poderiam ser obtidas por meios independentes, seguindo-se os procedimentos típicos e de praxe da Fiscalização da Receita Federal.”
Dois conselheiros dos contribuintes deram seus votos por escrito. Tatiana Midori Migiyama discordou da posição tomada pelo relator. “As provas derivadas de provas ilícitas consideradas nesse processo, como firmou o próprio Ministério Público, foram decorrentes da operação dilúvio – que foram textualmente consideradas pelo STJ como ilícitas. Ademais, não há como atestar que poderiam ser obtidas por meio independente”, argumentou.
Já o conselheiro Demes Brito explicou porque acompanhou o relator. “Frente aos fatos […] seria irrelevante lavrar o autos de infração especialmente em desfavor do importador de direito, empresa de fachada, quando restou comprovada o verdadeiro adquirente das mercadorias importadas”, contrapôs o conselheiro.
Demes foi além. “Em sua decisão, o STJ não declarou a ilegalidade de toda prova produzida no inquérito policial, mas apenas da interceptação telefônica no tocante às sucessivas renovações e daquela decorrente dela (aplicação da teoria do fruto da árvore envenenada, atualmente positivada no artigo 157 do CPP)”.
De maneira reservada, ao menos dois conselheiros do Carf expressaram desconforto com o posicionamento. “Há manifestação do STJ, do Ministério Público e do juiz de 1ª instância do caso, afirmando que as provas são ilícitas. Me parece temerário o Carf querer ignorar estes fatos e reconhecer a licitude das provas”, afirmou um conselheiro da 3ª Seção. Agora, o caso retornará à 1ª Turma da 4ª Câmara da 3ª Seção, que deverá reanalisar o caso com base nas provas consideradas legais pela Câmara Superior.
Houve desobediência?
Entre parte dos entrevistados há um entendimento de que o Carf, ao decidir desta maneira, foi contra uma determinação de uma corte superior. “O Carf acaba por desrespeitar uma ordem judicial, e usurpa uma competência do STJ”, pondera Carina.
A tributarista do FH Advogados Bruna Menani Lima ainda lembra que o contexto da ação penal divergiu do entendimento do tribunal administrativo. “O resultado da ação criminal foi favorável ao réu, justamente após o Ministério Público afirmar que não era possível dissociar provas lícitas e ilícitas”, comenta. “Se o Carf interpreta, pelo direito patrimonial, de maneira distinta, isto causa uma insegurança jurídica.”
Bruna, porém, não enxerga uma desobediência clara na decisão. “A decisão do STJ é um precedente, mas não há súmula vinculante sobre o caso. E, mesmo se houvesse súmula, seria uma interpretação mais estrita: mesmo que ela seja baseada em um forte fundamento, não acredito que ela obrigaria o Carf a atuar desta forma.”
Fonte: JOTA