Em meio à grave crise econômica que assola atualmente o Estado brasileiro, historicamente decorrente de uma ineficiente gestão da máquina pública, não têm sido raras as pretensões destemperadas do governo federal para fins de geração, a qualquer custo, de receitas, em especial, tributárias.
Exemplo disso é o novel projeto de lei enviado ao Congresso Nacional, no início deste mês, com vistas, dentre outras coisas e, no que aqui interessa, a alterações na legislação do IRPF, que viabilizem, como se possível fosse (mas não o é) uma tributação federal incidente sobre heranças e doações.
Essa iniciativa, via PL, decorre de um anseio governamental em poder compensar as perdas de arrecadação que advirão da correção da tabela do IRPF, a partir de 2017. Correção, aliás, que, apenas “en passant”, longe de dever ser tratada como benesse do Estado, constitui-se, na verdade, como verdadeira obrigação sua, sob pena de falsa aferição da real capacidade contributiva objetiva dos contribuintes.
Em épocas de paz, inviável se entremostra a tributação de heranças e doações pela União Federal
No caso da tributação de heranças e doações, por sua vez, que se pretende efetivar por meio da legislação do IRPF (Lei nº 7.713/88), o referido PL busca a revogação parcial de uma suposta isenção já existente em seu art. 6º, XVI, segundo o qual, “Ficam isentos do Imposto de Renda os seguintes rendimentos percebidos por pessoas físicas: (…) XVI – o valor dos bens adquiridos por doação ou herança”.
De acordo com o PL em referência, a bem da verdade, a isenção do IRPF apenas continuaria nos casos (i) de heranças e doações em adiantamento de legítima, até R$ 5 milhões e, (ii) para outras formas de doações que não superassem R$ 1 milhão.
Como se nota, pois, as heranças e doações já se mostravam presentes, como modalidades de “acréscimo patrimonial”, na própria legislação do IRPF, não estando este sendo cobrado até então, sobre as mesmas, porém, por uma mera questão de ‘vontade legislativa’, em que se optou, nestas situações, até hoje, pela concessão de absoluta isenção tributária, a qual, agora, quer-se ver relativizada.
O fato, contudo, de aqueles institutos civis (heranças e doações) já constarem da legislação do IRPF, nenhuma (ou maior) legitimidade dá às intenções do governo.
Muito antes de bem performarem em meio à legislação ordinária do IRPF, deverão tais institutos manter coerência plena com o que prevê e estabelece nossa atual Constituição Federal, sob pena de subversão ao sistema jurídico atual.
Com efeito, a atual Carta da República não criou tributos. Em contrapartida desenhou, com esmero, suas regras-matrizes (Roque Carrazza), seus orientadores de incidência, consignando, expressamente, no que ora nos interessa, uma rígida repartição de competências tributárias, em meio a materialidades também rigorosamente estabelecidas.
Se a aferição de rendas realmente restou destinada à tributação federal, via Imposto de Renda, este não foi, em igual proporção, o caminho eleito originariamente pela Constituição no que toca “aos rendimentos”, se assim o chamarmos, advindos de heranças e doações, para os quais, ao contrário, foi destinada uma competência impositiva apenas e tão somente aos Estados e Distrito Federal (“art. 155: Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: I- imposto sobre transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos”), o que já impediria, de pronto, a pretensão constante do PL ora em questão.
Uma única possibilidade de tributação das heranças e doações pela UF, invadindo-se competência originária dos Estados e DF, considerado nosso modelo constitucional atual, seria sua ocorrência através da chamada imposição extraordinária (imposto extraordinário). O que, por seu turno, apenas se justificaria na existência de um estado de beligerância da nação, vale dizer, quando diante de guerra externa ou de sua iminência e, ainda, assim, apenas enquanto tal estado perdurasse (artigo 154, II, da CF).
Do contrário, ou seja, em épocas de paz, inviável se entremostra a tributação de heranças e doações pela UF.
Nem mesmo isso seria possível, avançando-se um pouco mais, no caso de tentativa de alteração do texto Constitucional via emenda (Poder Constituinte Derivado), haja vista não poder ser objeto de deliberação qualquer proposta de emenda tendente a abolir, dentre outras coisas, a forma federativa de Estado e os direitos e garantias individuais (art. 60, p. 4º, I e IV, da CF).
Ora, qualquer tentativa de deslocamento de competência tributária dos Estados e DF à UF, via emenda, estaria, em tudo e por tudo, violando o pacto federativo originariamente estabelecido, cuja premissa maior reside, justamente, na repartição autônoma de competências legislativas. E, por ser a competência tributária uma delas, qualquer pretensão da UF nesse sentido não encontraria qualquer respaldo jurídico, mormente pelas receitas geradas aos Estados e DF por conta do imposto a eles imputado viabilizarem a assunção de seus objetivos institucionais (autonomias financeira e jurídica).
Da mesma forma, no que toca aos direitos e garantias individuais, o texto primário da CF já consignou o direito de os cidadãos-contribuintes apenas terem suas heranças e doações, em momentos de paz, tributadas por meio de imposto de competência dos Estados e DF. O que, também por aqui, derrubaria qualquer intenção governamental em contrário.
Em nosso sentir, portanto, a (bi)tributação federal sobre heranças e doações almejada pelo PL em referência, mostra-se como absoluto “non sense” tributário.
Fonte : Valor Econômico