Pagamento de tributos após denúncia penal – 27/04/2011

No fim da década de 60, o economista da Universidade de Chicago, Gary Becker, divulgou artigo intitulado “CrimePunishment: An Economic Approach” (1968), no qual, mediante uma análise econômica do comportamento ilegal, buscava demonstrar a presença de uma escolha racional do criminoso pelo crime, baseada numa relação de custos e benefícios inerentes à atividade ilícita. Propunha, com isso, a necessidade de fortalecimento do sistema punitivo, mediante a adoção de penas mais severas e implemento das instituições responsáveis pela persecução criminal. É inegável a influência do pensamento de Becker nos rumos da recente política criminal brasileira, havendo clara disposição de nosso legislativo para a definição de novos delitos, bem como pela agravação do tratamento conferido a crimes já contemplados pelo ordenamento. Nesse panorama, pode ser alocada à Lei nº 12.382, de 2011, que revogou a antiga possibilidade de extinção da punibilidade, a qualquer tempo, pelo pagamento, integral ou parcelado, do débito tributário. Conforme a nova diretiva, tal extinção só será possível caso o empresário efetue a opção pela pronta quitação ou parcelamento, antes do recebimento da denúncia pelo juiz. Nossa análise se limita à verificação de compatibilidade da nova lei com a Constituição Federal, haja vista ser esta a condição primordial para que uma norma tenha efeitos válidos no mundo jurídico. Nesse ponto, não hesitamos ao afirmar que o art. 6º, da Lei do Salário Mínimo é materialmente inconstitucional, por ferir diretamente o princípio da isonomia, previsto no art. 5º, caput, da CF/88. A Lei do Salário Mínimo trata de forma diferenciada um mesmo fato penal Visto de uma forma simples, pode-se conceber o referido princípio pela proibição da concessão de tratamento diverso a situações equivalentes, ou ainda, de tratamento mais gravoso a fato menos ofensivo, sendo esta segunda hipótese também abarcada pelo postulado da proporcionalidade. Trata-se de princípio básico, o qual tem sido adotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em várias decisões, destacando-se, dentre elas, a declaração de inconstitucionalidade da antiga proibição da progressão de regime de cumprimento de pena nos crimes hediondos. Pelo voto do ministro Marco Aurélio, restou firmada a ilegitimidade da previsão de tratamento diverso entre a Lei de Crimes Hediondos e a Lei de Tortura, por serem tais delitos equiparados pela Constituição Federal (STF- HC 82.959). Em palavras simples, mesmo tratando-se de crimes diversos, o Supremo entendeu ser injusta a falta de paridade punitiva, por serem ambos equivalentes no quesito ofensividade. A Lei do Salário Mínimo vai mais longe, pois confere tratamento diferenciado não apenas a delito diverso, mas a um mesmo fato penal. Imagine-se, a respeito, que as empresas A e B sejam autuadas pelo não recolhimento de determinado tributo, sendo que, após o competente processo administrativo, o Fisco decide pela manutenção da autuação contra ambas, inscrevendo os débitos na dívida ativa. Imagine-se, ainda, que os sócios de A, acuados pela ameaça penal, decidam aderir ao programa de parcelamento da dívida, optando, antes do recebimento da denúncia, pelo pagamento em longos 180 meses, conforme lhes é permitido pela Lei Federal nº 11.941, de 2009. Os sócios da empresa B, não concordando com o Fisco, decidem exercer o sagrado direito de defesa e afrontar a “cobrança” e, depois de instaurado o processo penal, mudam de ideia, optando pelo pagamento da dívida, à vista. Pois bem. Aos sócios de A, que arrastariam sua dívida por longos 180 meses, é conferido o beneplácito da suspensão da pretensão processual com extinção da pretensão punitiva ao término do pagamento, enquanto os sócios de B, que após a denúncia decidiram ressarcir os cofres públicos numa só tacada, serão processados e – muito provavelmente – condenados. Aliás, o processo destes últimos fatalmente terá fim antes, bem antes, de decorridos os 15 anos concedidos aos sócios da primeira empresa. Resta evidente que para os cofres públicos apresenta-se muito mais danosa a primeira conduta, não havendo como conceber a existência de tal privilégio sem que se tenha, forçosamente, negado eficácia aos princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade e da ofensividade em matéria penal. Retomando Becker, cumpre esclarecer que o legislador é livre para estabelecer tanto os crimes como a forma de puni-los. É opção de política criminal. Contudo, é igualmente verdadeiro que essa liberdade apresenta-se condicionada à obediência aos limites de atuação legislativa estabelecidos pela Constituição Federal, sob pena de se transmudar em arbítrio, ora caracterizado como inconstitucionalidade material. Helios Nogués Moyano e Douglas Lima Goulart são, respectivamente, advogado e sócio fundador do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e advogado criminal em São Paulo, especializando em direito penal econômico pela Fundação Getúlio Vargas Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações
Fonte: Valor Econômico