IMPOSSIBILIDADE DE DECLARAÇÃO DE INCOMUNICABILIDADE RETROATIVA NA UNIÃO ESTÁVEL

Há um estigma muito grande quando se pensa na regulamentação jurídica da união estável, especialmente no cenário de intensas mudanças culturais e sociais causadas pela vida moderna e plural, que desvincularam o sentido tradicional de família formada pelo matrimônio e passaram a validar as uniões livres.

Algumas razões contribuíram para a existência da convivência informal, por exemplo, motivos sociais, culturais, econômicos, ou porque se acreditava no amparo de seus direitos patrimoniais ao tempo da dissolução da convivência, e ainda podem conduzir à resistência de alguns para regulamentarem e se submeterem às regras impostas pelo Estado.

Por mais que, nos últimos anos, a união estável tenha recebido maior amplitude no que se refere à proteção dos direitos patrimoniais, sendo, inclusive, equiparada ao casamento para fins sucessórios, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar o RE 878.694/MG, algumas reflexões acerca desta entidade familiar são necessárias.

Ressalta-se que os conviventes podem estipular matérias sobre a disposição e administração de seus bens, escolhendo, dentre os modelos legais de regime de bens, ou mesclando os efeitos de um ou de outro tipo, como lhes convier, desde que o façam por escritura pública de reconhecimento de união estável.

Somente se não optarem por nenhum regime é que automaticamente se aplicará o regime legal da comunhão parcial de bens, tido como regra no ordenamento jurídico, conforme dispõe o artigo 1.725 do Código Civil, segundo o qual “na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”.

Por força do regime da comunhão parcial, previsto no artigo 1.658 do Código Civil, comunicam-se os bens adquiridos na constância da união, de sorte que, no caso de dissolução em vida, cada um dos companheiros tem direito a metade do patrimônio juntos amealhado, os chamados de bens comuns, mas nada recebem quanto aos bens particulares que o outro possuía ao tempo do início do vínculo. Já no caso de morte de um deles, aquele que sobreviver, além de receber a meação dos bens comuns, herdará, em partes iguais com os descendentes, os bens particulares do falecido.

Recentemente, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.845.416/MS, com base no voto da Ministra Nanci Andrighi, decidiu pela impossibilidade de serem conferidos efeitos retroativos ao regime de bens escolhido pelos conviventes por meio de escritura pública de reconhecimento de união estável.

Para a ministra, há autonomia aos conviventes para estabelecerem regras da vida patrimonial, contudo, enquanto não declaradas, por escrito, haverá intervenção estatal para definir o regime da comunhão parcial de bens, automaticamente aplicada às relações informais, nos termos do já citado artigo 1.725 do Código Civil.

Com isso, a celebração de uma escritura pública que fixa, de forma retroativa, outro regime patrimonial, definindo-se a incomunicabilidade de bens para situação pré-existente, conferiria a modificação de regime que já existia, o que não se admite porque a “ausência de contrato escrito não pode ser equiparada à ausência de regime de bens”, explicou a Ministra.

Contextualizando a situação fática enfrentada pelo Superior Tribunal de Justiça, os conviventes mantiveram relacionamento ao longo de 35 anos, iniciada no ano de 1980, formalizada apenas em 2012, por meio da primeira escritura pública de reconhecimento de união estável, sem dispor sobre o regime de bens, e firmada a segunda em 2015, quando então estipularam o regime da separação total de bens para situação pretérita, isto é, para vigorar desde o início da relação.

Ao elegerem o regime da separação total, previsto nos artigos 1.687 e 1.688 do Código Civil, pretenderam que todos os bens que compunham o patrimônio fossem exclusivos daquele convivente constante no título aquisitivo, pois, incomunicáveis ao outro, tanto os bens que antecederam quanto os que sobrevieram à união.

Por consequência dessa interpretação, acredita-se na restrição da autonomia e liberdade contratual das relações privadas no que se refere a autorregulamentação patrimonial, o que se evidencia a exemplo das relações recentes que já mantém período não formal, ao qual será imposta a comunicabilidade dos bens, impossibilitando-os de optarem por outro regime.

O entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça pode gerar consequências às uniões já estabelecidas com cláusulas retroativas, por certo que há riscos de serem revertidos os efeitos patrimoniais pretendidos pelos conviventes por ocasião da dissolução. Contudo, a declaração de incomunicabilidade dos bens continua válida e igualmente necessária à satisfação dos objetivos de planejamento patrimonial e sucessório, cujos efeitos, a partir dessa decisão, somente passam a ter eficácia no momento em que manifestada por escrito.

Nesse ponto, reforça-se a importância de ser declarada a vontade dos companheiros, por escrito, sobretudo se pretendem iniciar a convivência sob o manto de um regime distinto, sob pena de se submeterem, no período da relação informal, ao da comunhão parcial de bens.

Vale dizer, portanto, que a formalização da união estável vai além de conferir os efeitos pessoais e patrimoniais que pautarão todo o período da convivência, visa também resguardar a segurança jurídica das relações, a minimização de eventuais litígios e, consequentemente, das demandas judiciais acerca da partilha dos bens, a fim de garantir maior harmonia familiar.

MARJORIE SAMPAIO CORRADI, é advogada na Jorge Gomes Advogados, Bacharela em Direito pelo Centro Universitário Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente.