REFORMA TRIBUTÁRIA EM TEMPOS DE COVID-19: REMÉDIO OU VENENO?

Um dos temais mais discutidos na sociedade brasileira em 2019, sem sombra de dúvidas, foi a tão almejada Reforma Tributária. Findo 2019 e com o início de 2020, certamente não foi esquecido, mas teve relegado a um papel de coadjuvante ante o protagonismo assumido pelos temas decorrentes pandemia do COVID-19, que, justificadamente, ocupou todo o cenário do debate social com a finalidade de se buscar medidas para se minimizar seus impactos.

Em matéria tributária não foi diferente e não poderia deixar de ser. O sistema jurídico sensível ao impacto causado na sociedade movimentou-se, por meio de suas estruturas, a fim de promover uma resposta necessária, ainda que de forma imediatista, a fim de tentar mitigar os efeitos da crise.

De fato o tema reforma tributária, até o presente momento (24/04/2020), ficou numa posição secundária, mas deve e irá retomar seu papel no debate social e político nos próximos meses, agora em um cenário pós COVID-19. O que levanta dúvidas sobre se um cenário de crise, tal qual o que se ora apresenta, amplia ou diminui as oportunidades e a qualidade dos debates sobre o tema.

Ante o cenário atual, propõe-se a seguinte alegoria: poder-se-ia comparar o sistema tributário a um paciente, já moribundo com diversas comorbidades; que conta com seus 55 (que numa perspectiva da tributação sobre o consumo cujas bases foram lançadas na reforma de 1965 (EC 18/1965, o CTN de 1966 já conta com seus 54 anos); hipertenso (no caso do sistema tributário hipercomplexo, o que vem provocando grande desgaste nos últimos anos, aumentando a dificuldade de se identificar o quê, quanto, quando e onde se paga tributo, diminuindo assim o ambiente de negócios provocando hipertensão nos setores produtivo e seu relacionamento com a sociedade especial no que toca a regressividade e a distribuição de renda); diabético (não admite ser alimentado com qualquer incremento, sua base já “erodida” não confere margem de ajustes e reajustes a não ser o aumento de alíquotas de sua já saturada incidência, a carga tributária que já atinge níveis elevados podendo chegar, inclusive a 55% ante a sistemática de tributos calculados por dentro e incidentes com bases compostas por outros tributos, ainda que indiretamente), e uma série de outras doenças crônicas (há quem o desenhe até como paciente oncológico), tendo recentemente testado positivo para o COVID-19.

“Eis o quadro clínico do paciente, o Sistema Tributário Constitucional. É grave, mas sobrevive”.

Sob esse viés, é que se propõe a análise do tema da reforma tributária, num ambiente de crise social de proporções imprevisíveis e incalculáveis, mas que demanda posições e decisões urgentes.

Tomando-se por suposto de que a diferença entre remédio e veneno é a dose. Perguntar-se-ia: No momento da crise atual a reforma tributária, seria remédio ou veneno? Nesse ponto, portanto, deve ser “administrado” agora? E em qual dose?

Uma primeira postura (e possível resposta) seria: não fazer nada! Deixar que o próprio sistema, operando por meio de suas estruturas e que a evolução dos tempos, (tanto mais quando se observa um exacerbado ativismo judicial) possa suprir as necessidades e inconsistências existentes no sistema contemporizando as mutações ocorridas na sociedade à ordem jurídica. Na alegoria proposta, seria como mandar o paciente moribundo com comorbidades graves e portador da COVID-19 para casa e aguardar que seu sistema imunológico produza os anticorpos necessários e cure-se sozinho.

Outra postura seria tratar, a partir de alterações pontuais, em nível infra constitucional, os problemas já conhecidos, propondo medidas paliativas e pontuais no sentido de promover uma maior simplificação do sistema e racionalização em sua aplicação, o que remonta a opinião já defendida publicamente por grandes estudiosos do Direito Tributário, entendendo que o Sistema Constitucional não seria o problema, mas sim a forma pela qual vem sendo utilizado. Seria como se o médico, ante o quadro clínico instaurado, administrasse dentro da literatura médica convencional a manutenção dos tratamentos já utilizado pelos pacientes, os fármacos tradicionais e homologados para combater suas comorbidades pré-existentes, associados a recomendação de atividades físicas regulares, já que, os problemas causados, teriam origem em seus maus hábitos alimentares e sedentarismo.

Por fim, não passa desapercebido o debate sobre a administração de medicamentos não homologados para o tratamento do coronavírus (apenas para ficar na horizontalidade do debate sobre os reais efeitos no tratamento – pra não dizer raso); De um lado, a posição de cientistas sobre a falta de condições necessárias, para que se autorizar o seu uso e, eventual, risco para o paciente de se utilizar os tratamentos convencionais no combate de uma doença “nova”; de outro o risco de morte do paciente moribundo e possibilidade da medida servir-lhe como medida para salvar-lhe a vida.

A maioria das propostas de reforma tributária têm por objeto de alteração a tributação na “base consumo” e oferecem como solução uma medida que já vem sendo praticada em mais de 160 (cento e sessenta) países, qual seja o Imposto sobre Valor Adicionado, também conhecido como IVA, mas que encontra resistência de um grande número de juristas de relevo.

Em grande medida, as propostas por adoção de um IVA [seja ele único – PEC 45 e PEC 110, dual (Proposta do IPEA) ou tripartido)] têm como grandes pontos solucionar os problemas econômicos causados pelo modelo atual ao ponto de oferecer uma maior simplificação do sistema, impor uma neutralidade ao sistema tributário e com isso fomentar a atividade econômica e promover um melhor e mais adequado ambiente de negócios, de forma a conferir transparência sobre o que se paga, quanto se paga, para quem se paga, quanto se paga e onde se paga, associado à uma simplificação no que toca aos deveres instrumentais tributários e a correspondente redução dos custos de conformidade.

Só que para isso propõe uma ruptura com o modelo atual e fornece uma alteração estrutural no sistema, que passa pela redistribuição de competência tributária, uma formatação totalmente nova em termos de administração tributária, seja por parte da administração pública, seja no que toca à experiência dos particulares; que incidirá sobre uma base muito mais ampla em disrupção ao modelo atual.

Ao mesmo tempo que lança luzes em termos de busca de soluções para a atual situação, deixa dúvida acerca dos reais efeitos e impactos futuros.

Eis aí o ponto de inflexão! Qual posição adotar:

1) Dá-se alta ao paciente, mandando-o para casa e aguarde que se reestabeleça, ou ainda, tenha seu quadro de evolução para óbito?

2) De outra ponta, utilizando-se do conhecimento científico atual, ministre-se, de acordo com os manuais e protocolos, as soluções homologadas esperando que o paciente mude seus hábitos de vida, e que mesmo sem um “histórico de atleta”, possa se recompor e aproveite o resto de sua vida, ainda que em condições de comorbidades pré-existentes.

3) Ou ainda, ante o grave estado do paciente, que corre sério risco de morte, e que nesse caso deixaria viúva e filhos à mingua, poderia ser aplicável tratamento que se demonstra efetivo para outros problemas, sob grande controvérsia da comunidade científica, em relação a seus efeitos futuros?

Existe, nas posições, muita paixão e contaminação da argumentação por elementos externos, o que acaba por desviar o foco de algumas questões importantes que devem ser ponderadas e discutidas em cada um de seus ambientes.

Por exemplo, se determinada reforma serve para promover efetivamente maior alocação de recursos, tal debate deve ser explorado e esgotado às minúcias pelo sistema econômico e sua ciência própria; Se os mecanismos de redistribuição e restituição de tributos para os mais pobres se mostram mais eficazes do que a renúncia fiscal provocada por incentivos fiscais é efetiva, deve ser analisado sob o ponto de vista estatístico e sociológico. Ainda, se tal e qual proposta tem maior ou menor capital político a ponto de ser aprovada, deve ser objeto de análise da ciência política. Sem ignorar, por óbvio, que cada um dos sistemas provocará irritação necessária aos demais ao ponto de lhes influenciar a produção de comunicação interna na análise e elaboração de nova comunicação.

Aqui a ideia é destacar a necessidade da análise a partir de dois recortes fundamentais. Um primeiro recorte jurídico, em uma tentativa de apartar elementos estranhos ao direito oriundos dos sistemas econômico, social e político, e, num segundo recorte, restringindo-se ao âmbito constitucional para se promover o enfrentamento da análise de uma reforma tributária sob vertentes consubstanciadas nos seguintes questionamentos: é necessária? É adequada? É proporcional?

Está muito claro – e  de há muito – que o sistema tributário tal qual instaurado e instalado, bem como, a forma pela qual vem sendo aplicado, mostra-se insuficiente, dada a complexidade da sociedade, bem como a necessária promoção de um modelo que melhor promova um ambiente de negócios sustentável e adequada distribuição de rendas e de riquezas. Portanto, à primeira pergunta, a resposta é: sim! Restaria, ainda, perquirir e voltar os olhos especificamente para cada uma das propostas a fim de identificar qual delas apresentaria as alternativas que atinjam a finalidade almejada sem atingir ou, se atingir, em menor grau, direitos fundamentais.

A pergunta sobre a adequação de uma reforma tributária poderia ser recomposta em três níveis [em que intensidade, qualitativo e graus de certeza em relação a seu resultado finalístico] o que funcionaria como vetores orientativos para questionamentos derivados e sub derivados:

1) É constitucional? Viola cláusula pétrea? Qual violação?

1.1) No que toca ao Pacto Federativo (Nesse ponto é necessário delimitar que se entende por federalismo; explorar os conceitos de uniformidade/autonomia; no que toca autonomia se esta se dá com o poder de meramente de dispor de recursos ou está intrinsecamente ligada à noção de exercício da própria competência normativa), eventual reforma ao promover alteração no status quo mitiga, mantém ou reforça o princípio federativo?

1.2) O Princípio da Igualdade é mitigado ou reforçado? Princípio da capacidade contributiva é respeitado? Tende-se a lhe conferir maior ou menor extensão?

1.3) Confere Segurança Jurídica? Aumenta-se ou diminui-se o grau de possibilidade de compreensão? e no que toca a confiança e previsibilidade?

Por fim, dentro da relação entre o fim almejado, quais sejam dotar o sistema tributário de neutralidade (com o corte para a “base consumo”), simplificação do sistema (diminuindo-se custos de conformidade e redução de contencioso administrativo e judicial), os meios adotados pela reforma conferem maior transparência (ou seja, garantem maior compreensão do sistema? Conferem maior confiança no que toca sua aplicação? Garante previsibilidade?).

A todas essas perguntas os especialistas (seja no campo das ciências jurídicas, seja no campo das ciências econômicas) tinham prontas respostas, fosse para afirmar a viabilidade de determinada proposta; fosse para negá-la.

Ocorre que, o cenário social e econômico foi totalmente impactado pela pandemia do COVID-19, e reduz, substancialmente, a janela temporal e material no que toca o espectro político. As respostas econômicas estavam colocadas em um cenário que demandaria certo crescimento econômico para que seus benefícios, associados a uma maior efetividade na arrecadação pudesse fazer frente às perdas eventuais em comparação com o modelo atual.

Nesse ponto é que o sistema jurídico, por meio de suas estruturas, deverá fornecer a estabilização necessária a garantir que, em meio a todas as preocupações sociais, econômicas e políticas, por mais caótico que se possa apresentar, e por mais que outros sistemas lhe imponham forte influência, sejam protegidas as expectativas normativas em que se plasmam direitos fundamentais conquistados no passado e projetados para o futuro.

JOSÉ MAURO DE OLIVEIRA JUNIOR, é Advogado, sócio na Jorge Gomes Advogados, especialista em Direito Empresarial e Tributário pela PUC/PR; Especialista em Direito Tributário pelo IBET e Professor Seminarista do IBET/Toledo Prudente.
josemauro@jorgegomes.com.br